Introdução
Até princípios do ano passado, considerava-se que a doença vesicular (DV) em porcos era causada por um dos seguintes quatro vírus RNA: vírus da Febre Aftosa (FAv, aftovirus da família Picornaviridae), vírus da Estomatite Vesícular (VSIv, também conhecido como VSv, vesiculovirus dentro dos Rhabdoviridae), vírus do Exantema Vesícular Suíno (VESv, vesivirus pertencente aos Caliciviridae) ou o vírus da Doença Vesícular Suína (DVSv, enterovirus dentro dos Picornaviridae). Neste caso clínico vou-me referir a eles como os "4 grandes" vírus da DV.
Contudo, tem havido casos esporádicos em todo o mundo (incluindo Nova Zelândia, Itália, EUA e Brasil) nos que houve informação de doença vesicular em populações de suínos negativas aos 4 vírus. Nalguns casos detectou-se Senecavirus A (SVA) em populações de suínos com DV e com ausência dos 4 grandes vírus. Estes casos foram descritos como "doença vesícular idiopática", já que a relação causal entre o SVA e a DV não era clara.
O SVA é um vírus RNA que pertence à família Picornaviridae (juntamente com o FAv e o DVSv). Anteriormente era conhecido como vírus Seneca Valley. O SVA é conhecido na literatura humana pelas suas propriedades oncolíticas. Com efeito há ensaios clínicos com SVA em humanos para o tratamento do câncro. Sabe-se que o SVA pode replicar-se em porcos, bovinos e roedores. Recentemente foram descritos dois casos clínicos associados a SVA em porcos: mortalidade neonatal epidémica transitória (ETNL) e Doença Vesicular.
Neste artigoo descreveremos o aparecimento clínico de DV associada à identificação de SVA.
Caso
A exploração: Trata-se de uma exploração de 8.000 porcas em ciclo fechado, todas situadas na mesmo local no sudeste do Brasil, que tem de vários pavilhões com ventilação natural. As marrãs de reposição são feitas na própria exploração. O sémen é comprado num centro de IA externo que o entrega 3 vezes por semana (2ªs, 4ªs e 6ªs feiras). O pessoal trabalha exclusivamente nesta exploração e os produtos/equipamentos não se partilham com outras explorações. Em geral, a exploração tem boas práticas de biossegurança (vazio sanitário, duche para entrar e sair, relativa pouca frequência de movimento de porcos, os camiões são lavados, desinfectados e deixam-se secar durante 24h antes de voltar a carregar porcos, é uma região com pouca densidade suína). Esta exploração não tem qualquer historial prévio de DV nos seus 10 anos de existência. É PRRSv-negativa, Mycoplasma hyopneumoniae-positiva. Os pavilhões de engorda têm 30 porcos por parque e as baterias 60 leitões por parque.
Aparecimento da doença clínica:
Dias 1-3: O pessoal da exploração nota que os porcos de engorda estão menos activos do que o habitual, mas não comentam nada com o veterinário da exploração. Não se observam lesões nem coxeiras.
Dias 4-10: cerca de 25% dos porcos de engorda e 15% das baterias estão coxos. No dia 9 é contactado o veterinário, que visita a exploração no dia 10 pensando em Mycoplasma hyosynoviae. Durante a visita realiza-se uma inspecção clínica detalhada aos animais de todas as idades. São detectadas algumas pequenas lesões interdigitais, nas almofadas plantares e nas bandas coronárias na maioria dos porcos coxos (>90%) dos parques de engorda e alguns das baterias (~ 30%).
Também se encontram vesículas de 0,5 a 1,5 cm de diâmetro nos focinhos de 1% dos porcos de engorda (aproximadamente 1 porco em cada ~ 3 parques). Só se detectam 2 vesículas em focinhos nas baterias.
O veterinário da exploração chama os Serviços Veterinários Oficiais, que abrem uma investigação para detectar se se trata de uma doença animal exótica. São enviados fluidos vesiculares e zaragatoas das bandas coronárias de alguns porcos afectados para diagnóstico veterinário oficial e, após 3 dias, resultam negativas para os 4 grandes vírus. Todas as amostras foram positivas a RNA de SVA mediante RT-PCR. Nesse momento (Outono de 2014), não havia testes serológicos para SVA.
Entretanto, os porcos continuam a ser examinados diariamente para ver a evolução e/ou recuperação dos sintomas clínicos associados a DV. Não se observam coxeiras nem DV na população reprodutora (porcas). Os leitões recém-nascidos do grupo afectado têm um aumento temporário da mortalidade em 50% durante uns 7 dias, mas a mortalidade volta aos seus níveis habituais e não se observa DV nem nas porcas nem nos leitões.
Nos porcos das baterias e engorda continuam a aparecer novos casos de coxeiras e sintomas de DV mais leves com uma taxa de incidência de cerca de 5% por semana durante 4 meses após o aparecimento do caso.
Quando os porcos começam a apresentar coxeira marcam-se com spray para serem examinados diariamente. Detecta-se DV na maioria dos porcos coxos – tanto no dia 0 da coxeira como ao fim de 1-2 dias. As lesões de DV sã curadas completamente em 7-10 dias. Não há nenhuma alteração significativa na mortalidade na fase de crescimento.
Entre os 4 e 5 meses após o aparecimento do caso, a incidência de lesões de tipo DV diminui para quase zero. Neste momento, a exploração leva 6 meses sem DV nem aumento do número de coxeiras. O tratamento dos porcos afectados dependia da gravidade das lesões da DV. Os que tinham lesões graves recebiam um cuidado básico das unhas para ajudar à sua recuperação, enquanto que os porcos com lesões mais graves eram injectados com antibióticos + antiinflamatórios para evitar complicações por infecções secundárias.
Comentários finais
Recentemente foi levado a cabo um estudo conjunto entre a Universidade Estatal de Iowa (ISU) e o Departamento de Agricultura dos EUA (USDA) que foi apresentado na ISU Swine Disease Conference em Ames, Iowa, EUA, que encontrou evidências de DV produzida por isolados de SVA de porcos de produção com clínica de DV. Portanto, o SVA pode considerar-se um dos agentes etiológicos de DV em porcos, juntamente com os outros 4 grandes (agora os 5 grandes).
Ainda que a DV provocada por SVA seja mais leve e mais curta em comparação com a FAv, o desenvolvimento inicial das lesões de DV é clinicamente indistinguível do da FAv. Deve levar-se a cabo um diagnóstico pelos Serviços Veterinários Oficiais para descartar FAv e não se fazerem suposições do tipo "deve ser outro caso de SVA" quando se saiba que o SVA esteja a circular e a causar DV em populações de porcos próximas.
Neste caso concreto, não pudemos confirmar a fonte de origem do vírus. Sabe-se que outras explorações da zona tinham informado de mortalidade neonatal epidémica transitória associada a SVA e/ou lesões de DV (pelo menos 8 explorações num raio de 10 km). As especulações incluem mosquitos (outros picornavirus são transmitidos por vectores), aerosóis, ingredientes da ração, vacinas e veículos de transporte de porcos.
Este caso é um grande exemplo de que os agentes patogénicos inesperados podem aparecer em qualquer momento. As práticas de biossegurança devem ser revistas permanentemente e implementadas diariamente (constantemente).