A conservação da carne através da fermentação e da secagem é conhecida desde tempos remotos, mas actualmente os enchidos fermentados-curados são produtos apreciados e valorizados pelo consumidor pelas suas características particulares sensoriais bem diferenciadas, mais que como uma maneira de conservar a carne fresca.
A carne é uma fonte importante de proteínas de elevado valor biológico, minerais como o ferro e vitaminas como a B12 e o ácido fólico, mas ao mesmo tempo o consumidor actual está cada dia mais consciente da relação entre alimentação e saúde e, com frequência, pensa nos produtos de origem cárnea como pouco saudáveis devido ao seu conteúdo em gordura e sal, entre outros factores, o que limita o seu consumo. De outro ponto de vista, os enchidos fermentados podem ser vistos com uma fonte de microorganismos benéficos, os responsáveis pela própria fermentação das carne, bactérias do ácido láctico (BAL) algumas das quais descritas como probióticos e muito bem aceites em outro tipo de produtos fermentados, os derivados lácteos.
Na Figura 1 pode-se ver que, nos últimos 5 anos, uma parte muito importante (84%) dos produtos de mercado com alguma menção relacionada com o termo probiótico são produtos lácteos, seguidos, a uma distância considerável por alimentos infantis (6%), comida para animais de companhia (3%) e sobremesas e gelados (2%), entre outros. Aa categoria "carne, pescado e ovoprodutos processados", onde se situariam os enchidos fermentados, é muito minoritária (0,3%). Portanto, o nicho de mercado de produtos cárneos funcionais, com propriedades probióticas, pode ser contemplado como uma oportunidade de inovação para o sector das carnes.
Figura 1. Produtos postos no mercado Europeu nos últimos 5 anos com alguma menção relacionada com o termo probiótico. Os valores indicam a percentagem de cada categoria relativamente ao total. Fonte: Mintel-Global New Products Database.
Segundo a FAO/OMS, as bactérias probióticas são "microorganismos vivos que, quando administrados em quantidades adequadas, proporcionam benefícios na saúde do hospedeiro", principalmente graças à manutenção do equilíbrio ecológico no tracto digestivo. Partindo do conhecimento de que as BAL estão presentes, e em grande número, no tracto gastrointestinal dos humanos, de forma transitória ou permanente, a hipótese colocada no trabalho desenvolvido no IRTA a de encontrar as estirpes intestinais que fossem capazes de resistir às condições tecnológicas que acarreta um processo de fermentação e desidratação, o que seria o primeiro passo para as veicular como cultivos num enchido fermentado. Desta maneira aumentariam as possibilidades de colonização do tracto gastrointestinal humano. O objectivo final do projecto (INIA RTA2009-00045-00-00) era obter produtos de qualidade, funcionais e seguros como uma potencial via alternativa ou complementar para fornecer bactérias probióticas.
Foram isoladas 109 estirpes de BAL a partir de fezes de lactantes sãos e observou-se que o Lactobacillus era o género predominante. Como este género é o mais relevante do ponto de vista tecnológico para o produto cárneo em questão, foi feita a caracterização e identificação das estirpes previamente discriminadas por técnicas moleculares. Após uma pré-selecção de estirpes com bom potencial tecnológico, funcional e de segurança, evidenciado in vitro, e da avaliação da sua capacidade como cultivos iniciadores no produto (Rubio et al. 2014a), foram eleitas 2 estirpes de L. casei e 1 de L. rhamnosus , as mais competitivas durante a fermentação, e inocularam-se como culturas iniciadoras em fuet (*) formulado como baixo em gordura e sal, portanto, nutricionalmente melhorado (Rubio et al. 2014b). A avaliação sensorial destes enchidos foi boa, todos apresentaram uma qualidade satisfatória e as características típicas do fuet, mas apenas a estirpe potencialmente probiótica L. rhamnosus CTC1679 (Figura 2) foi capaz de crescer e dominar (108 ufc/g) sobre a microbiota endógena da carne, em 2 ensaios independentes, sendo mais competitiva que as três estirpes comerciais probióticas ensaiadas (L. plantarum 299v, L. rhamnosus GG y L. casei Shirota).
Figura 2. Lactobacillus rhamnosus CTC1679 ao microscópio óptico de contraste de fases (1000x).
Considerando que a dose de ingestão diária recomendada para observar o efeito esperado no hospedeiro é da ordem de 108-1010 bactérias probióticas (Champagne et al. 2011), podemos deduzir que o consumo de apenas 10 gramas de fuet probiótico-CTC1679 por dia, quantidade de todo compatível com uma dieta sã e equilibrada, proporcionaria a dose necessária de probiótico. De facto, no estudo preliminar realizado com cinco voluntários sãos que consumiram diariamente e durante 21 dias fuet com L. rhamnosus CTC1679 como cultivo iniciador, foi possível constatar que esta estirpe era capaz de colonizar de forma transitória o tracto gastrointestinal e de persistir em níveis elevados durante o periodo de ingestão em todos eles (Rubio et al. 2014c), o que, junto com a adesão de CTC1679 à linha celular HT29 (Garriga et al. 2015) sugere a enorme potencialidade desta bactéria para conseguir "enchidos probióticos".
Portanto, podemos concluir que através da estratégia de reformulação planeada (redução de sal e gordura e adição do cultivo iniciador potencialmente probiótico L. rhamnosus CTC1679) foi desenvolvido um enchido fermentado-curado de baixa acidez com grande potencial funcional, microbiologicamente seguro e sensorialmente adequado. As perspectivas são pois boas para promover o valor intrínseco dos enchidos probióticos como produtos funcionais e saudáveis, sem esquecer que ficam pendentes os ensaios clínicos rigorosamente desenhados para demonstrar cientificamente o benefício esperado na saúde do consumidor.
(*) Enchido catalão