O sangue procedente dos matadouros é utilizado, desde há muito tempo, como ingrediente alimentar na preparação de alimentos. Trata-se de um produto com propriedades saudáveis devido ao seu conteúdo em proteínas de elevado valor biológico e ferro. Esta riqueza nutricional do sangue não é, no entanto, o único aspecto relevante a considerar do ponto de vista da sua aplicação como ingrediente alimentar, já que as suas proteínas apresentam, além disso, propriedades tecno-funcionais muito importantes. Entende-se por propriedade tecno-funcional qualquer propriedade não nutricional que influa na utilização de um ingrediente num alimento. A maior parte das propriedades funcionais afectam as características sensoriais do alimento (especialmente a textura), mas também podem ter um papel decisivo no comportamento físico dos alimentos durante a sua preparação, transformação ou armazenamento.
A maneira de potenciar a tecno-funcionalidade das proteínas do sangue passa por separar previamente a fracção celular (constituida basicamente por glóbulos vermelhos ou eritrócitos, mas também outros componentes minoritários como os glóbulos brancos ou leucócitos e plaquetas) do plasma (um líquido de cor amarelada). Isto deve-se não só à diferente funcionalidade das proteínas que constituem cada fracção mas também ao facto de que a hemoglobina –que representa 90% das proteínas da fracção celular - ser a responsável por conferir uma cor escura e um sabor metálico aos produtos aos quais é adicionado o sangue, o que limita muito as aplicações tanto do sangue inteiro como da fracção celular. Pelo contrário, o plasma pode ser adicionado em quantidades relativamente elevadas, especialmente se os produtos aos quais é incorporado contèm na sua receita substâncias que ajudem a mascarar o seu sabor.
As propriedades tecno-funcionais das proteínas do plasma incluem a formação e estabilização de emulsões graças à sua capacidade de se localizar nas interfases de sistemas dispersos pela sua natureza amfifílica e a formação de gels induzidos por aquecimento com boas propriedades texturais e uma elevada capacidade de retenção de água (Figura 1). Estas propriedades fazem com que o plasma se aplique realmente como ingrediente no caso de produtos de carne submetidos a tratamentos térmicos, convertendo-o num bom candidato para substituír proteínas de outras fontes como podem ser as proteínas de soja ou o soro do leite e ainda os polifosfatos (Hurtado et al., 2011) cujo consumo excessivo pode alterar a relação óptima cálcio/fósforo no corpo humano (Takeda et al., 2004; Tani et al., 2007). Também é utilizado em produtos de carne injectados com salmoura graças à sua elevada solubilidade e baixa viscosidade e como substituto de gordura sem que isso conduza a efeitos negativos sobre a sua qualidade (Cofrades et al., 2000; Viana et al., 2005). Entre os produtos de carne que habitualmente contém plasma ou algum dos seus derivados na sua formulação encontram-se as salchichas de Frankfurt, Wursts, salchichas de Bolónia, mortadelas e salames. Mais recentemente foi colocada a hipótese de ser usado na preparação de tripa natural biodegradável para produtos de carne, embora as suas características de solubilidade limitem o seu uso (Nuthong et al., 2009).
Figura 1. Gels de plasma de porco induzidos por calor.
Sem considerar a água (~90%), o plasma é constituído basicamente por proteínas (6-7% do plasma), que incluem fundamentalmente albumina (60%), globulinas (36%) e fibrinogénio (3-4%). Cada uma destas fracções apresenta características moleculares e fisico-químicas particulares. Assim, a albumina é uma proteína globular com um peso molecular de 69 kDa e um ponto isoeléctrico (pI) de 4.8 que muda para ~5.7 quando a molécula não está unida a ácidos gordos (Carter y Ho, 1994). As globulinas são um grupo heterogéneo de proteínas globulares que contém principalmente α, ß e γ globulinas –sendo estas últimas as mais abundantes– com uma ampla distribuição de pesos moleculares, desde poucos a centenas de kDa e pI entre 5 e 7. O fibrinogénio (a proteína mais termo-sensível do plasma) tem uma estrutura fibrosa, um peso molecular de 340 kDa e um pI de 5.5. O plasma, após eliminado o fibrinogénio, é conhecido com o nome de soro sanguíneo. Estas diferenças traduzem-se em perfis tecno-funcionais particulares para cada uma delas.
Se bem que tradicionalmente se tenha considerado que a albumina era a principal proteína implicada na gelificação térmica do plasma, actualmente sabe-se que, por si só, não é capaz de formar gels duros sendo a interacção sinérgica com as globulinas que permite obtê-los e que o fibrinogénio interage de forma selectiva com a albumina durante a gelificação (Dàvila et al., 2007). Também se observou que o fibrinogénio apresenta uma elevada capacidade emulsionante de maneira que pode ser utilizado em alimentos com alto conteúdo em gordura (Álvarez et al., 2009). Esta funcionalidade diferencial fez com que o fraccionamento das proteínas do plasma seja contemplado como uma possibilidade para a reformulação de produtos derivados do plasma com o objectivo de potenciar propriedades específicas. Assim, além de plasma suíno líquido, congelado em blocos ou escamas, e /ou desidratado, há empresas que comercializam plasma enriquecido com fibrinogénio, soro concentrado ou um produto que contém trombina e fibrinogénio e que é utilizado para obter reestruturados de origem em carne.