Durante as últimas décadas, muito se tem falado do problema de deficit de proteína que poderá ter origem no crescimento demográfico e aumento do consumo de proteína animal, tanto em países desenvolvidos como em vias de desenvolvimento. Paralelamente ao aumento de população e de ingestão de calorias que aconteceu em muitos países, também foi variando a composição das dietas, pelo que as modalidades de consumo de alimentos vão sendo cada vez mais semelhantes em todo o mundo, misturando alimentos mais caros, como a carne e os lacticínios. O documento da FAO do ano 2002 (World agriculture: towards 2015/2030. Summary report, FAO 2002) que avaliava as perspectivas, à escala mundial, para a alimentação e a agricultura durante o periodo 2015-2030, já reflectia um aumento esperado do consumo de carne em países em desenvolvimento de até 37 kg anuais per capita em 2030, quando em 1997-99 era apenas de 26 kg e na década de 60 da ordem de 10 kg. Produzir mais carne implica um incremento da procura de alimentos para animais, uma tendência que afecta de maneira importante o meio ambiente. As necessidades de proteína e o custo meio ambiental da produção de animais de carne, fazem com que não nos possamos permitir desperdiçar a proteína de alto valor biológico que contém o sangue, proveniente do abate desses animais.
Nos matadouros industriais produz-se uma grande quantidade de sangue. Metade do volume de sangue de um animal abatido permanece na carne e órgãos internos, mas a outra metade pode ser recuperada através do sangramento. Uma aproximação da quantidade de sangue derivada das operações de processamento primário de carne na Europa pode ser feita a partir do número de animais abatidos, que em 2012 foi mais de 308 milhões de porcos e mais de 42 milhões de bovinos (FAOSTAT, 2014). Se considerarmos que se podem recolher 3 litros de sangue de cada porco e 10 litros de cada novilho, a disponibilidade anual de sangue pode superar as 1.344.000 toneladas. Considerando um conteúdo médio de proteína por volta dos 18%, este volume de sangue é equivalente a 242.000 toneladas de proteína aproximadamente (166.320 toneladas apenas a partir de sangue de porco), o que representa entre 5 e 8% do rendimento em proteína obtida a partir de animais abatidos.
Infelizmente, o interesse por explorar a potencialidade do sangue como fonte de proteína tem sido bastante limitado. Durante muito tempo o sangue tem sido considerado como resíduo, pelo que a principal preocupação se tem centrado na sua eliminação. No entanto, devido ao volume que se gera e à sua composição, o sangue não pode ser vertido directamente nos sistemas de drenagem dos matadouros de gado, sem ter sido submetido previamente a dispendiosos tratamentos para reduzir a sua carga contaminante. O tratamento que tem sido aplicado, como alternativa, tem consistido em processar inespecificamente o sangue em grandes digestores, junto com outros subprodutos orgânicos, mas obtendo um produto sem muito ou nenhum valor acrescentado, e deixando por explorar as possibilidades de valorização.
O sangue é um sub-produto natural da indústria da carne que permite obter uma grande variedade de ingredientes alimentares especialmente adequados para produtos de carne. Além disso, tem um valor nutricional importante, do sangue podem ser obtidos ingredientes funcionais para usos particulares, como são agentes emulsionantes, espumantes, texturizantes, corantes ou compostos bioactivos (Parés, D. et al., 2011). O desafio para a indústria está na capacidade de introduzir as melhorias técnicas necessárias nas operações de sangramento e recolha higiénica que permitam a recuperação do sangue em condições adequadas para a sua exploração, ou seja, que possam garantir tanto a sua qualidade como a segurança dos alimentos onde é adicionado.
Figura 1. Esquema do processamento do sangue.
Em 2001, estimou-se que a indústria alimentar utilizava 30% do sangue produzido nos matadouros (Ofori, J.A. i Hsieh, Y-H.P., 2012) mas, mesmo que não haja dados confirmados, é provável que a utilização actual supere este valor. O plasma, a fracção líquida do sangue que se obtém depois de separar a fracção que contém as células sanguíneas [glóbulos brancos, glóbulos vermelhos (eritrócitos) e plaquetas] é o que se utiliza mais amplamente, já que tem um sabor neutro e não tem cor escura associada ao sangue inteiro e à fracção celular, que contem a hemoglobina. Em geral, o uso como ingredientes destes últimos foi restringido a determinados produtos tradicionais (como a morcela ou o chouriço de sangue) onde a cor que proporcionam pode ser aceite (Ockerman, H.W. i Hansen, C.L., 2000).
Ainda que em alguns países europeus, como a França, se valorize positivamente a adição de sangue animal a produtos de carne, o seu uso como aditivo alimentar não tem uma aceitação generalizada, em alguns casos, atendendo a considerações religiosas. No entanto, há que advertir que adicionar sangue ou hemoderivados apenas representa a adição de um ingrediente que já está presente de maneira natural na carne. Por outro lado, convém notar também que as proteínas da sangue não apresentam potencial alergénico, pelo que poden ser uma alternativa competitiva a alguns dos ingredientes funcionais utilizados na formulação de muitos alimentos, como são as proteínas de trigo, soja, ovos ou leite, responsáveis pelas alergias alimentares mais comuns.
O benefícios ambientais, nutricionais e económicos resultantes de utilizar ao máximo o potencial do sangue animal, junto aos avanços nos sistemas de colheita e processamento,já deram origem a uma grande variedade de ingredientes proteicos que se encontram disponíveis para uso em alimentos e suplementos dietéticos (Ofori, J.A. i Hsieh, Y-H.P., 2012).