Os métodos de obtenção da fracção celular consistem em separar o sangue inteiro com anticoagulante em fracção plasmática (plasma) e fracção celular através de centrifugação. O rendimento de obtenção de fraccção celular após o processo de separação é de aproximadamente 40% do sangue inteiro (CSIRO, 2003). A fracção celular é a parte do sangue constituido pelos eritrócitos ou glóbulos vermelhos e, em menor proporção, pelos leucócitos ou glóbulos brancos e as plaquetas. Os eritrócitos contém a hemoglobina, que representa 90% das proteínas da fracção celular. Para recuperar a hemoglobina do interior dos eritrócitos é necessário aplicar um tratamento de hemólise, através da homogenização a alta pressão ou por ultrassonização, seguido de uma etapa de centrifugação opcional para separar o estroma. A hemoglobina é uma proteína conjugada constituida por uma parte proteica, composta por 4 subunidades (globinas) que têm associado um grupo hemo não proteico em que há um átomo de ferro. O grupo hemo é o responsável pela cor do sangue. Muitos estudos indicaram que tanto o sangue inteiro como a fracção celular são boas fontes de suplementação de ferro, principalmente devido à elevada biodisponibilidade apresentada pelo ferro hémico (Ofori y Hsieh, 2012).
As proteínas do sangue, principalmente as do plasma (como a albumina, fibrinogénio e globulina), têm propriedades tecnológicas relevantes como capacidade de gelificação, espumante e emulsionante, o que motivou o uso de produtos derivados do sangue como ingredientes com valor acrescentado por parte da indústria alimentar e também como suplementos dietéticos (Hsieh y Ofori, 2011). No entanto, relativamente à fracção celular não há tantas aplicações desenvolvidas como no caso do plasma, devido ao grupo hemo que confere uma cor vermelha escura e um flavor indesejado aos produtos quando é adicionada e isto limita a sua utilização à dose de aplicação, que tende a estar restringida a um 0,5-2% do produto.
Para evitar os efeitos adversos sensoriais da adição da hemoglobina ou da fracção celular, foram desenvolvidos vários métodos de descoloração. Estes incluem o branqueamento com peróxido de hidrogénio e a separação do pigmento hemo da globina mediante extracção com acetona acidificada ou por absorção com agentes como a carboximetilcelulose ou o alginato sódico. No entanto, estes processos não têm sido amplamente utilizados a nível industrial devido ao custo e a que alguns deles, em particular o branqueamento, podem reduzir o valor nutricional do sangue (Ofori y Hsieh, 2012). Uma possível alternativa é eliminar o grupo hemo através de tratamentos de hidrólise enzimática (Toldrà et al., 2011), com diferentes tipos de enzimas proteolíticas, para produzir globina descolorada ou hidrolizados proteicos, que está descrito que podem ter boas propriedades nutricionais ou tecnológicas ou ser fonte de péptidos bioactivos com actividades fisiológicas ou benéficas para a saúde, como por exemplo: actividades antioxidante, anti-hipertensiva, analgésica ou opiácea, entre otros, que podem ser utilizados como ingredientes em alimentos funcionais, assim como actividade antibacteriana que se poderá aproveitar para ser utilizados como aditivos conservantes (Hsieh y Ofori, 2011; Toldrà et al., 2011).
Figura 1. Principais produtos derivados da fracção celular do sangue de matadouro.
Por outro lado, outra possível aplicação da fracção celular na indústria das carnes é utilizá-la como um potenciador da cor para salsichas e outros produtos de carne. Também pode ser utilizada directamente a hemoglobina como pigmento vrmelho natural de origem carneo. A cor da hemoglobina depende directamente do estado de oxigenação/oxidação do ferro hémico. A oxihemoglobina é de cor vermelha brilhante, mas quando oxidada passa a metahemoglobina, que tem uma cor castanha indesejável. As tecnologias utilizadas a nível industrial para conservar este produto, como a desidratação, favorecem a oxidação da hemoglobina em metahemoglobina, processo que pode continuar durante o armazenamento do pó. Portanto, previamente, há que estabilizar a hemoglobina para prevenir a acessibilidade do oxigénio ao ferro hémico, reduzir a auto-oxidação e assim poder utilizá-la como corante vermelho natural (Ofori y Hsieh, 2012; Parés et al., 2011). Nesta linha, foram realizados diversos estudos para obter produtos derivados da hemoglobina através da utilização de agentes antioxidantes e redutores, como o ácido ascórbico, a dextrina, a glucose e a L-cisteína e substâncias quelantes, capazes de formar complexos ao reagir com o grupo hemo, como o ácido nicotínico e a nicotinamida. Os melhores resultados na prevenção da auto-oxidação durante a secagem por atomização e também do escurecimento oxidativo que se produz durante o armazenamento do produto em pó foram observados com a derivatização química da hemoglobina com a utilização combinada de agentes quelantes e agentes redutores (Toldrà et al., 2000; Saguer et al., 2003; Salvador et al., 2009), apesar de que o desafio é melhorar a estabilidade deste corante frente aos tratamentos térmicos e às condições de pH ácido de muitos produtos de carne, sobretudo naqueles que não contenham nitritos.
Apesar das metas tecnológicas que conseguiram no campo do aproveitamento do sangue animal e as suas fracções como ingredientes nutricionais e/ou aditivos tecnofuncionais para a indústria alimentar, as proteínas procedentes do plasma sanguíneo e da fracção celular ainda estão bastante sobreutilizadas.